domingo, 9 de março de 2014

O Estado Natural da Mente

Nas postagens "Sun Gazing - A Medicina Gratuita do Futuro" e "A Roda da Vida", citamos este tulku ( que significa reencarnado, em tibetano) que fixou-se nos EUA e é um dos responsáveis pela difusão do budismo tibetano no ocidente, como são Trung Pa, Tenzin Wangyal Rinpoche e tantos outros. A palavra está com ele:
"Os que não estão acostumados à meditação entendem, não raro, que ela é uma coisa estranha, inusitada, não natural - uma experiência exótica a ser realizada - ou que a meditação é uma coisa diferente da pessoa que medita, ou que é, pura e simplesmente, outra faceta da psicologia ou da filosofia oriental, que deve ser pesquisada, estudada e explorada. A meditação, todavia, não é algo estranho, separado ou externo. A meditação é o estado natural da mente, e a natureza inteira da mente pode ser a nossa meditação.
A meditação começa quando permitimos ao nosso corpo e à nossa mente que se relaxem de um modo profundo e pleno... o que fazemos ao vivenciar o sentimento que vem com o simples soltar, sem mesmo haver dito a nós mesmos para fazê-lo. Quando deixamos tudo ser exatamente como é, e atentamos para o silencio das nossas mentes - isso passa a ser a nossa meditação. Este silêncio não é apenas a ausência do som nem mesmo a liberdade da distração; é a abertura plena, a presença da mente. Quando simplesmente permanecemos silenciosos no interior do momento - sem nos apegarmos à segurança, sem tentarmos compreender os nossos problemas - tudo o que resta é percepção.
A meditação é o processo do auto-descobrimento. Em certo nível, a experiência da meditação nos mostra os padrões das nossas vidas - a maneira com que carregamos nossas características emocionais desde a infância. Em outro nível, porém, ela nos liberta desses padrões, facilitando para nós a visão dos nossos potenciais interiores.
Quando examinamos, olhando para trás, os padrões dos nossos pensamentos, podemos, às vezes, observar e identificar as decepções criadas por nossas auto-imagens.
Podemos aprender a enxergar através das atitudes e do faz-de-conta da mente e através de todas as nossas explicações e escusas. Podemos compreender que estamos apenas disputando jogos e que estamos longe do genuíno conhecimento de nós mesmos.
Estamos sempre fixando limites e restrições arbitrárias a nós mesmos, olhando para o mundo e vivenciando-o a partir de pontos de vista rígidos; achamos que uma experiência não-relacionada com nossos sentimentos ou projeções não tem valor. Mas, quando passamos além da objetivação de conceitos, além do dualismo, além do espaço e do tempo, o que teremos a perder? Se perdermos alguma coisa, perderemos, quando muito, nossos medos, nossas idéias-fixas, o nosso tenso apego a um "eu" imaginado e à imaginada segurança desse "eu". O estado de espírito natural nada tem para perder. É só por causa da nossa alienação de nós mesmos que deixamos de compreender antes que podemos ficar dentro da atenção, que é a nossa natureza intrínseca, nosso próprio lar.
Embora "falemos" a respeito da nossa natureza intrínseca, isso não significa necessariamente que a vivenciamos. Ao invés disso, quase todos somos continuamente surpreendidos no processo de gerar idéias e explicações... de modo que a nossa mente prossegue nesse curso, interminavelmente. O "eu" está se associando com várias emoções, sentimentos, conceitos e reflexões psicológicas. O ego está sempre esperando para perguntar-nos se realizamos alguma coisa; de modo que temos de "responder" a nós mesmos o tempo todo - e nos vemos fora da nossa experiência, olhando para dentro.
Conquanto tentemos, com todo o nosso empenho, ser atentos e perceptivos, nossos diálogos interiores e projeções criam obstáculos que estragam a imediação da nossa experiência. Quanto mais tentamos interpretar uma experiência e vesti-la com palavras, tanto mais nos apartamos dela. Quedamo-nos com conceitos "fixos" e opiniões dualísticas acerca do mundo, de modo que nossas respostas e reações a situações cotidianas não fluem de um estado natural. É como se fôssemos viver no meio de um formoso jardim de flores - e, não obstante, não déssemos atenção a ele. Podemos gastar anos e anos explicando, pensando e analisando, sem nunca descobrir esse estado natural.
Compreender esse estado mental é difícil, porque acreditamos que nossos pensamentos, emoções e sentimentos são "meus"; julgamo-los em relação com a "minha" situação, a "minha" vida. Mas pensamentos e sentimentos não são "eu". Um pensamento simplesmente é associado a outro pensamento, que depois se associa a um terceiro. Cada pensamento envolve várias palavras e imagens, como as imagens de uma fita de cinema, que se movem continuamente, para a frente e para trás, de tal sorte que a série de imagens ocupa a nossa percepção e drena a nossa energia. Finalmente, perde-se a percepção. Ficamos como crianças que assistem a um desenho animado - perdidas ali, com os olhos arregalados pregados à tela.
Quando observamos as nossas mente, vemos que a nossa consciência se fixa com facilidade em pensamentos ou em entradas sensoriais. Por exemplo: quando ouvimos de repente o bater de uma porta ou o guinchar do tráfego, nossas mentes projetam imediatamente uma imagem ou conceito; e, associada a essa idéia ou imagem, há uma experiência de tons de sentimentos muito preciosos e exatos. Estando dentro do momento imediato, é possível entrar "dentro" dessa experiência. Nesse momento descobrimos certo tipo de atmosfera ou ambiente interior que não tem forma, nem formato, nem característica específica, nem estrutura. Não há palavras, imagens, conceitos ou posições para manter - visto que qualquer posição - uma posição de manutenção, uma posição de exame ou uma posição "além"- ainda estaria se referindo a algo que se encontra, em última análise, relacionado conosco como o sujeito. Por conseguinte, para libertar-nos dos padrões dualísticos da nossa mente é importante passar "além" das compreensões e crenças relativas, olhar "para dentro" e, tanto quanto possível permanecer dentro do primeiro momento da experiência.
Visto que a mente, em sua verdadeira natureza, não tem dualidade, não está separada da unidade de tudo o que existe, nossas vidas tornam-se a nossa meditação. A meditação não é uma técnica para fugir deste mundo - é um bom amigo e um bom professor que podem guiar, amparar e ajudar a nossa mente a tocar diretamente nosso ser mais íntimo, sem paredes que nos separem da nossa percepção, da nossa inspiração e da nossa intuição. Através dessa experiência podemos estabelecer contato com a nossa própria inteireza.
Por conseguinte, a qualquer momento podemos fazer amizade com a meditação; e, na visão que nasce da meditação, experimentamos toda a existência como plena e bela - pois tudo tem beleza, o modo com que trabalhamos, pensamos, falamos - cada situação tem o seu próprio valor inerente e o seu significado. Quando trazemos a luz da meditação para a nossa vida, esta se torna mais rica, mais significativa e mais expressiva, e somos capazes de lidar aberta e diretamente com todas as situações.
Essa percepção natural é simples e direta, aberta e receptiva, imediata e espontânea, sem obscurecimento; não há medo nem sentimento de culpa, não há problema sem desejo de escapar ou de ser de outro modo. "Natural" quer dizer "não-fixo", quer dizer não ter expectativas, nem compulsões, nem interpretações, nem planos predeterminados.
Quando a meditação se aprofunda, não há necessidade de fixá-la, melhorá-la ou aperfeiçoa-la. Não há necessidade de progredir, visto que tudo se move no estado natural da realidade.
Uma vez que somos capazes de vivenciar essa percepção imediata, não há nada entre a nossa mente e a meditação. A experiência é sempre nova, inédita, clara e bela. Se bem esteja além do nosso senso comum de tempo, ainda há continuidade. Tudo é exatamente "como é", sem que nada lhe seja acrescentado nem subtraído.
Se, na nossa meditação, pudermos ficar em nosso momento presente, é possível experimentar esse estado mais elevado de percepção. Mas quando nos agarramos às projeções mentais ou tentamos recordar instruções específicas ou certos processos, apenas continuamos a seguir os movimentos da mente no nível da consciência. Podemos estudar e praticar durante anos num nível conceitual, executar inúmeras ações positivas e reunir uma grande quantidade de informações mas, ainda assim, não chegar muito mais perto da verdadeira compreensão. Portanto, é necessário expandir a percepção para fora do domínio do diálogo interior, alargar-nos e abrir-nos o mais que pudermos, e ficarmos muito silenciosos. Estes ainda são apenas conceitos; porém, mais tarde, com a prática, podemos passar, além dessas idéias e padrões conceituais, a um estado de todo destituído de um centro, porque todas as limitações que exigem um centro se dissolveram - e isso é meditação.
À proporção que desenvolvemos a meditação, já não precisamos apoiar-nos em explicações intelectuais para justificar quem somos, pois a nossa auto-identidade redutora se dissipa, como o nevoeiro tocado pela luz do sol. Depois que tivermos compreendido isso, não precisamos lutar com o nosso ego e nossas emoções negativas - ou com discriminações entre o bem e o mal, o positivo e o negativo, o caminho espiritual ou a ação habitual. Dentro da experiência da meditação, a percepção espontânea surge por si mesma, e os conflitos emocionais e os problemas começam a perder seu domínio e tornam-se muito enevoados. Depois que deixamos de alimentar nossos problemas, eles desaparecem dentro da própria percepção. Durante todo esse tempo, podemos ver efetivamente que toda a natureza da mente é a nossa meditação. E, através disso, a nossa mente se torna iluminada de uma energia poderosa e preciosa, e nós vivenciamos diretamente uma compreensão indescritível e onisciente."

Do livro "GESTOS DE EQUILÍBRIO" de Tarthang Tulku

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