domingo, 17 de abril de 2011

O Contador de Histórias

As histórias, contos e lendas tradicionais tem a magia e o poder de transformação interior. A arte de contar histórias é uma arte antiga importante das culturas centradas na busca interior do Si Mesmo,  Elas formam o pano de fundo do inconsciente coletivo, necessário para que uma cultura forme naturalmente seres humanos que acreditem no Espírito, no Sagrado, no Invisível, no Mágico... desde crianças. Eu fiz assim com meus filhos, contando As Mil e Uma Noites antes de eles dormirem. Foi assim no Egito, Mesopotâmia, Índia, Pérsia, China, Japão, Américas, Austrália...Mas não é só para crianças, não. Nós que nascemos no Ocidente afastados disso podemos aproveitar porque a boa história não tem idade nem lugar, e toca algo insuspeitado, lá no fundo da gente, que aos poucos cria frutos, apesar de nós mesmos.
Consegui uma bem humorada, resgatada no fundo do baú da Patrícia. É das nossas lembranças, nos velhos tempos de um grupo “esotérico” que ficou no passado. E vamos contar para vocês, com sotaque caboclo e tudo.
(atenção Portugal: caboclo ou caipira é o brasileiro filho do cruzamento de português com índio... ocidente com xamanismo indígena). A singela história abaixo é algo digno das Mil e Uma Noites, mas é uma história cabocla, parida dos meandros mágicos da mente do meu amigo Junqueirinha.
Para ter a sorte de ter acesso a essa coisas, é preciso estar na hora certa, no lugar certo. E conhecer gente de qualidade interior como ele, médico e buscador, a Patrícia, bruxa taoista e buscadora séria, e Yolanda, da mesma escola. Ela foi lida numa festividade num grupo Gurdjeff e depois publicada por volta de 2003 na revista Meditação. A revista não mais existe, mas a história foi resgatada. Criação de Junqueirinha. Pura filosofia esotérica cabocla.
Vamos lá. É o Junqueirinha contando, com pompa e circunstância de caboclo, bem no jeitão do grande Guimarães Rosa :
“ - Um dos personagens mais incríveis que já conheci é o Mathias, um caboclo do sul de Minas Gerais. Um dia destes, refletindo sobre os caminhos e a vida, lembrei-me de uma conversa que ouvi dele com sua mulher, Yolanda, na varanda de seu sítio. Aqui está a lembrança dessa conversa simples e singela, que continha todo um ensinamento"

"- João Mathias, tem alguma coisa nos homens que preste"? - a mulher pergunta.
- Ôô...Tem sim, Yolanda. Tem nos homens um “tar” de brilho. E esse brilho é uma coisa tão rara que, por causa dele, muito deus já perdeu a pose.
- E os homens, Mathias, eles sabem que têm esse brilho?
- De quando em vez eles desconfiam! E quando isso acontece, a deusarada fica tiririca e não perdoa! E sabe por quê?
É porque os deuses usam esse mesmo brilho dos homens pra criar eles cercados neste pastão enorme que nóis chama de "mundo"!
- Os homens cercados num pasto? E onde tá a cerca, que eu nunca vi ela?
- Ocê nunca viu ela porque é uma cerca muito esperta, uai! É uma cerca feita de espelho!
- Cerca de espelho?
- Um montão deles! Os espelhos da cerca manda o brilho dos homens de volta pra eles. Só que tem um problema: o brilho volta falsificado! Os espelho? são bem diferente um do outro. Tem espelho que devolve o brilho dos homens de volta pra eles na forma de raiva; tem espelho que devolve esse brilho na forma de inveja. Tem até espelho que devolve alegria, mas é aquela alegria besta, de perceber que tem alguém por aí que tá ainda pior que nóis!
E os deus, que não são nada bobo, vão manejando os espelhos e jogando um contra os outros pra poder conduzir os homens de acordo com suas próprias necessidades!
E com o passar do tempo, os homens acabam pensando que o que eles vê nos espelhos da cerca é o que tá acontecendo de verdade!
Esquecem que o brilho tá é dentro  deles mesmo e que eles têm um direito sagrado de brilhar na escuridão!
- Tá dizendo que os deuses estão contra os homens, Mathias?
- Nem tanto, Yolanda. Se ocê pensar melhor, dá até pra entender um pouco da cabeça desses deus! Os caboclos que eles enganam com o truque dos espelhos, eles "traça", e tá acabado! Os que começa a perceber o golpe, eles "malha" bem, quase “inté matá”, que é pra vê se o caboclo forma opinião!
Então, se algum desses consegue “vará” a cerca, aí eles convida pra brincá de deus com eles!
E como toda cerca tem dois lado, o lado de fora dela é bem diferente do lado de dentro: em vez dos espelho de enganá gente, tem um sistema de uns estilingue bem grande “dipindurado” na cerca. Os deus, depois de dançá quadrilha com os caboclo que “varô” a cerca, põe eles no bojo dos estilingue e dá uma baita estilingada cum eles. Aí eles vão pará num lugar tão alto e tão cheio de sossego, que por lá nem o Tempo passa!
É aí nesse lugar que o brilho dos homens vai aumentando, vai aumentando, inté explodir numa boniteza que num termina nunca mais!
- Ô Mathias, e o que eu faço pra podê atravessá a cerca?
- Agora ocê fez a pergunta certa!
Primeiro: carece de percebê que ocê tá no pasto! Pode num parecê, mas essa é a parte mais difícil do caminho!
Depois: ocê tem de procurá as trilha deixada pelos furador de cerca! E olha que tem trilha pra tudo que é gosto! Tem trilha de andá descarço pisando em ponta de prego! Tem trilha de entrá fardado e onde só se pode andá de bando! Tem inté trilha, que pra entrá nela carece falá inglêis! Agora, vou contá pra ocê...tem uma que é mesmo bem ladina: ocê chega na ponta dela e “infinca” os pé firme no chão! Aí é só ficá quieto, bem quietinho mesmo, sem cismá cum nada... e a trilha anda sozinha!..”


4 comentários:

  1. Parabéns pa!
    O seu blog já é o primeiro na busca do google!!!!
    Tudo de bom!!!

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  2. Num canso de ler!!!! Cade esse contador...precisamos que conte mais!!!!

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  3. Acabo de ler p minha irmã, no aniversário dela. Não canso de ler e reler!

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  4. Belo texto! Passar para o outro lado da cerca e escolher qual trilha seguir é uma jornada de muito aprendizado e auto conhecimento!

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