quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A Recapitulação

A Recapitulação é uma atividade tolteca especializada do espreitador (aquele que busca a compreensão pela via da ação no mundo, diferentemente do sonhador). No cristianismo esotérico monástico aquele era chamado ativo em contrapartida a este, o contemplativo. Na conceituação gurdjieffiana aquele era o obyvatel, o dono de casa, o mantenedor. A recapitulação existe de formas parecidas na maioria das tradições autênticas e genuinas. É um tipo de "video tape", uma cópia que nos é permitida para refazer a "lição de casa" da nossa vida com atenção. Através da recapitulação você revive de fato (não é só um recordar) as experiências passadas, desta vez com o crivo da atenção, e então as rotinas da sua vida e relacionamento são impiedosamente expostas a si mesmo, para serem dissecadas e neutralizadas pela Consciência. É um "se dar conta" da prisão mecânica individual em que estamos e procurar escapulir. Há um prazer atávico em escapulir da prisão. É a vocação e o prêmio para o ser humano que busca o Si Mesmo. Mas poucos conseguem.
Você já percebeu como as pessoas gostam de filmes e histórias de prisioneiros que escapam? A Fuga de Alcatraz, Papillon, O Conde de Monte Cristo, ou mesmo Robinson Crusoe são exemplos fascinantes e mágicos dessa aventura da fuga da prisão...
A componente da socialização em nossas vidas, ao nos cristalizar num jeitão específico e política e socialmente corretos, nos torna padronizados e monotonamente repetitivos no nosso relacionamento com as pessoas, com o mundo que nos cerca, e também conosco mesmo. É um círculo vicioso sem fim. A prisão da socialização é a morte em vida, mas temos que passar inicialmente por ela, e só depois buscar a liberdade. Conscientemente.
A recapitulação é uma prática que traz isso à tona e inicia gradualmente o processo de transformação. 
A recapitulação se resume em um reviver, como um flash back, cada pessoa e situação da nossa vida. A prática está associada a um ritual de respiração onde eu vivo novamente a cena do passado ao inspirar e a descarto ao expirar, e com isso me livro das amarras de energia que recebi e dei na ocasião. Já que é um trabalho para a vida inteira e mais além, a recapitulação exige no início muita energia, determinação e paciência. Os aprendizes xamânicos no antigo México passavam muito tempo recapitulando. Nossa tendência é sempre adiar, procurar uma ocasião mais propícia para iniciar a prática, mas o Nagual (o mestre tolteca) deixa claro que o melhor momento para começar é sempre agora...
Ele diz que a totalidade de um caminho se resume em seu primeiro passo. Isso significa que as condições ideais são aqui e agora.
Se atentarmos para o fato de que através da recapitulação o espreitador engendra um meio de atender uma exigência inexorável do Mar Escuro da Consciência (a Águia), dando a ele as experiências pessoais vividas, e reivindicadas na hora da morte – e espertamente ficando com a vida (consciência), – não há dúvida de que essa é a atividade mais importante de nossas vidas, ou seja, procurar manter a consciência individual em evolução, mesmo sem mais possuir o corpo físico. Alguns chamam isso de imortalidade.
Com a passagem dos anos, o inevitável sentimento de urgência que sutilmente começa a aparecer  no ser humano comum, vai deixar claro que não estamos atendendo nesta vida a nossa mais alta vocação e potencialidade de ser humano, que é levar nossa consciência ao infinito. A recapitulação é uma oportunidade e como tal não deve ser ignorada ou subestimada. Da mesma forma que os hindus afirmam que é um privilégio nascer com a forma humana, é também um privilégio ter tido contato com tal ensinamento e prática nesta atual existência.
No livro O Poder do Silêncio, leitura fascinante, página 64, Don Juan diz a Carlos Castaneda:
“- Asseguro que durante nossas vidas ativas nunca temos a chance de ir além do nível da mera preocupação, porque desde tempos imemoriais a rotina dos afazeres diários nos entorpeceu. É apenas quando nossas vidas quase se encontram por terminar que nossa preocupação com o destino começa a assumir um caráter diferente. Começa a fazer-nos ver através da neblina das ocupações diárias. Infelizmente, esse despertar sempre vem de mãos dadas com a perda de energia causada pelo envelhecimento, quando não temos mais força para transformar nossa preocupação em descoberta pragmática e positiva. Nesse ponto, tudo o que nos é deixado é uma angústia amorfa e penetrante, um desejo por algo indescritível, e a simples raiva por ter errado o alvo.”
Deu um frio na espinha, né?
Então, como diz o Gil na música: "Se oriente rapaz..."

2 comentários:

  1. Castaneda falou da “recapitulação fortuita”. Essa é mais fácil. É aquela que a gente faz exatamente quando se pega pensando. Ele diz que nosso diálogo interno é formado pelas recordações, é uma recapitulação que nós a trazemos de forma involuntária, todo mundo faz isso, e acabamos nos envolvendo de novo com elas. Então quando entram as recordações, podemos logo recapitular, onde quer que estejamos. Tenho visto que quando a gente planeja, marca horários para recapitular,
    a mente acaba sempre tirando-nos da jogada. Mas se vc sem prévio aviso, acorda do diálogo interno e logo recapitula, aaah é um ganho.
    Luara

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  2. sem duvida, a recapitulaçao fortuito é extremamente "rentável", como está lá no "Econtros". mas um esforço bilioso sobre o conjunto, com listas e tudo, tbm vale a pena: pelo menos, para se livrar do grosso. "algo em nós ativa uma tremenda resistencia, nessas ocasioes.". o dialogo intenro e formado sobretudo por aquelas recordaçções q degeneraram em obsessoes, q volta e meia voltam a ocupar/borrar a tela q nos impede apercepção direta da realidade. como mantras interminaveis. nao sei onde li q um yogui famoso, ao ser perguntado sobre a origem das doenças mentais, respondeu: "mantras ruins".

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